sábado, 6 de fevereiro de 2016

O Drama Europeu: A Problemática – A Ameaça Chinesa e a Crise da Dívida Soberana

A Europa, ou melhormente especificando, a União Europeia vive actualmente uma crise que, tendo raiz financeira é hoje uma crise identitária que ameaça os mais robustos alicerces da construção europeia… os alicerces da não beligerância, da solidariedade e da prosperidade.
Proponho nos próximos três textos abordar este drama europeu, incidindo o presente naquilo que percepciono ser a origem e a raiz desta decadência europeísta que descaracterizou o projecto europeu e o metamorfoseou numa identidade hostil aos próprios países que o integram.

A União Europeia, desde a sua existência, consubstanciou o seu poder, no que á geopolítica mundial concerne, no seu poderio económico atestado pelo facto de se constituir no maior mercado interno em termos mundiais, o que foi possibilitado pela abolição das fronteiras comerciais e potenciado por um livre mercado alargado. Confiando a sua representatividade militar inteiramente à OTAN, o que significa basicamente confiá-la aos EUA, restava à Europa a via financeira e económica para lhe conferir verdadeiro poder diplomático que a tornasse um “player” relevante no xadrez político mundial, e foi esta até recentemente a identidade matricial e primordial da União Europeia, um poder diplomático relevante conferido pela via económico-financeira e não pela via militar, usado amiúde para, no contexto internacional, fazer valer os sues valores humanitários de liberdade, igualdade e fraternidade. E foi sobretudo devido a esta identidade iluminada que sempre fui apologista do projecto europeu e um europeísta convicto; sempre fui acérrimo defensor de um acréscimo de poder da União Europeia no panorama político mundial (em detrimento de outras potências como os EUA e a Rússia) exactamente por o seu poder ser conferido por uma via não militar e logo menos susceptível de se tornar totalitário e despótico.

Essa realidade no entanto mudou. A União Europeia já não é o maior mercado interno mundial, nem o segundo sequer, e a perda de poder diplomático decorrente degenerou numa alienação identitária que é a raiz deste drama europeu de que vos falo. O que foi então que ocorreu no panorama internacional que conduziu á perda do poder económico europeu e à sua inanição política? A resposta mais óbvia passa por referir a crise financeira de 2008 e a sua degeneração em crise de dívida soberana de que os estados europeus não se conseguiram ainda libertar. Tal resposta é correcta mas incompleta porquanto o espaço europeu já havia deixado de ser o maior mercado interno mundial e perdido relevância política antes ainda de “Wall Street” ter tocado a sineta da crise financeira. A verdade é que esta mesma crise apenas enfatizou e agudizou o processo de declínio europeu originado e principado pelo surgimento da China enquanto nova potência mundial.

A China tal como a União Europeia consubstancia o seu poder politico/diplomático no seu poderio financeiro e não militar (que saibamos), no entanto, os factores desse poder financeiro diferem abissalmente daqueles explicadores do sucesso financeiro europeu, porquanto não derivam da criação de um espaço económico alargado potenciador de crescimento económico por via do aumento das trocas comerciais daí decorrentes. Embora o aumento do poder financeiro chinês e decorrente aumento da sua relevância política não se justifiquem na criação de um espaço de comércio alargado, tal apenas foi possibilitado e propiciado por ter sido permitido à China aceder ao comércio mundial, tendo-se-lhes abolido essas fronteiras comerciais; ora, num comércio mundial com tantas restrições e tantos embargos a tantos países, perguntar-se-á como foi possível deixar aceder aos mercados mundiais e em pé de igualdade um país que até há bem pouco tempo tinha como política de controlo de natalidade a criação de quartos de extermínio para bebés e crianças não primogénitos. A resposta não é senão mais um exemplo cristalino da submissão de tudo ao primado financeiro e designa os parâmetros que balizam o poder económico-financeiro que sustenta este surgimento da China enquanto potência mundial, a saber:
- um crescimento económico galopante baseado num modelo de baixos salários, repressão e supressão de direitos laborais resultando numa situação de exploração laboral que a escravatura se assemelhará;
- uma política estratégica agressiva de aquisição de dívida soberana; a China é de há muito tempo para cá um dos principais adquiridores de títulos de dívida de muitos países ditos desenvolvidos, mormente dos EUA, assumindo-se dessa forma como financiador fundamental dessas economias;
- a China detém o monopólio da extracção e exportação dos materiais raros; materiais raros designam um conjunto de minérios cuja inclusão é indispensável ao funcionamento dos “gadgets” tecnológicos que tanto caracterizam o estilo de vida ocidental e desenvolvido, como smartphones, I-Phiones, I-Watches e outros “Ais” que designam o consumismo cosmopolita que consome mais do que matérias.
Dos três factores enunciados, sobretudo os dois últimos, resulta um poder financeiro bem diferente do do europeu, porquanto designa um poder político de sequestro e de chantagem, palpável nas possibilidades que sugere: “se não fazes como quero não te compro mais dívida nem vendo mais materiais de que dependem as tuas corporações babilónicas e no fundo todo o teu estilo de vida”.

E foi com este poder financeiro de sequestro e de chantagem que a China, apesar das atrocidades humanitárias que se lhe reconhecem, acolheu a receptividade dos mercados mundiais e, em mais uma manifestação da submissão de tudo ao primado financeiro (vide Capitalismo de Ultimo Reduto – o Grande Sequestrador), relegou para plano secundário de irrelevância a Europa e a União Europeia.


Perante este pepel secundário no plano político mundial para que fora relegada, impunha-se uma resposta à União Europeia a esta problemática da ameaça chinesa agudizada pela crise de dívida soberana. Impõe-se então a pergunta: e que resposta foi dada?

6 comentários:

  1. Sandrao, num outro post disseste que gostavas do contraditorio. Pois bem, quero deixar-te os meus “2 centimos” na materia. 
    Falta-te outro factor, porventura ate o mais importante, gerador da influencia economica mundial da China: a possibilidade dos paises ocidentais poderem exportar para o gigantesco mercado chines. Concretamente, tenho poucas duvidas que a possibilidade da Alemanha (...perdao, queria dizer UE) poder exportar carros para a China esta na origem do fechar de olhos a concorrencia injusta que eles fazem.
    Por outro lado, nao sei ate que ponto as enormes reservas externas da China conferem assim tanto poder 'a China: i) porque dada a dimensao da sua economia eles tem necessariamente que manter reservas enormes para evitar fugas de capitais (o ultimo artigo que li sobre o assunto indicava que as reservas actuais sao basicamente o valor medio do intervalo recomendado), ii) depois porque as enormes reservas significam que estao enormemente expostos ao risco de incumprimento ocidente. Por outras palavras, num caso extremo podem ser obrigados a continuar a comprar divida europeia ou americana para evitar perder tudo o que tem no mealheiro deles (tal como a Alemanha foi, segundo dizem, obrigada a "resgatar" a grecia para evitar um colapso dos proprios bancos alemaes).
    Mas, se me permites, o ponto mais importante que quero salientar e’ o seguinte. Penso que a “decadencia europeista” existe porque o sentimento europeu esta em retirada entee os europeus. E penso que esse sentimento esta em retirada nas sociedades europeias, porque nunca existiu uma verdadeira identidade politico-cultural europeia (para alem da generica identidade civilizacional, comum tambem aos paises do novo mundo) para alem do mutuo interesse. Como a UE aparentemente deixou de contribuir para a melhoria da vida dos europeus, qualquer aparencia de identidade politica europeia esta a esbater-se. Nao sei ate que ponto a perda de influencia externa tem muita influencia na “decadencia europeista”, para alem daqueles idealistas que veem a UE sobretudo como um meio para contrabalancar os EUA.

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    1. Quanto a idealismo e à visão dos idealistas da Europa, esse será a substância do último texto desta trilogia do Drama Europeu...Não deverias, no entanto, referir-te a idealismo e idealistas com tamanha condescendência e desprezo pois julgo sinceramente que uma das grandes causas do retrocesso civilizacional que, na minha opinião estamos a assistir, se deve à subjugação do idealismo ao pragmatismo e de pragmáticos que fazem da Europa um castelo tecnocrata e burocrata kafkiano, estou eu farto!

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    2. Não tenho nada contra idealismos, só não gosto é dessa versão do ideal europeu em particular(i.e, a UE como forma de restaurar o poder externo da Europa). De qualquer forma, gostando ou não gostando, o meu ponto é que não me parece que seja o falhanço na concretização desse ideal que esteja a desgraçar o europeísmo.

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    3. Eu compreendo a tua posição; tu dir-me-ás que o problema estará na criação de uma moeda comum sem uma política fiscal comum, num BCE que deveria ser independente mas que obedece a uma agenda política sequestrado pelo PPE e no fundo aquilo que eu abordarei na 2ª parte desta trilogia do Drama Europeu que é a criação de uma Europa a 2 velocidades que no fundo apenas serve para crispar posições e divisões no seio da Europa e assim antagonizar ainda mais os países que integram o projecto europeu. E dir-me-ás que aí é que reside a verdadeira problemática neste drama europeu e a perda da sua identidade. Dir-me-ás isso e tens razão...Agora eu responderei que esses seriam problemas menores e superáveis se a Europa mantivesse um poderio financeiro no panorama mundial que lhe permitisse ter uma preponderância política relevante, todos esses problemas seria sanáveis e adiáveis; o facto da Europa ter perdido essa relevância colocou um carácter de urgência na resolução desses problemas o que precipitou uma resposta desastrosa (que abordarei no meu próximo texto) que apenas contribuiu para um agravar da situação, no que à crise financeira e crise identitária diz respeito. A identidade da Europa que existia até agora passava por deter um papel de relevância no panorama político internacional facultada pelo seu preponderância financeira. Essa identidade deixou, inquestionavelmente, de existir e dada a inexistência de outras matrizes identitárias, como fizeste questão e bem de referir, fez com que a Europa ficasse órfã de uma identidade e entrasse numa crise identitária, decorrente da sua crise financeira e talvez de mais difícil resolução.

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    4. Até à primeira metade do teu paragrafo, parecia que me estavas a ler a mente :) Quanto à segunda metade, aguardo pelos próximos textos!

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  2. É claro que ser um mercado para produtos europeus é também um factor da influência chinesa tal como muitos outros que não referi como por exemplo a infiltração de empresas do estado chinês em sectores empresarias estratégicos de vários países ocidentais...Por exemplo, se o Estado Chinês assim entender, deixa de haver luz em Portugal. Mas estes são factores adquiridos numa fase posterior ao surgimento da China enquanto potência mundial, esses são factores de influência adquiridos pela China já enquanto potência mundial e por isso não os referi, uma vez que incidi sobretudo nos factores que possibilitaram esse mesmo surgimento da China enquanto potência mundial, quando esta ainda não o era, e não nos factores que proporcionam essa mesma influência adquiridos quando a China era já uma potência mundial e tinha já poder de compra para alimentar as exportações de inúmeros países europeus e não só. Quanto ao facto da compra de títulos de dívida ser também um factor de risco para a própria China é verdade mas a probabilidade de um nº significativo de países entrar em "default" e tal originar perdas significativas para a China é muito menor do que a probabilidade desses mesmos estados conseguirem arranjar compradores de dívida alternativos á China que garantam um nível de procura semelhante e logo "yields" baixas, e por isso neste jogo em que ambos podem perder, será sempre muito mais fácil fazer "call" ao bluff dos países ocidentais vendedores de dívida, do que à China. Por ultimo, no que á perda identitária da Europa diz respeito, eu julgo que havia e existe claramente uma partilha de valores que faziam da Europa uma identidade; por exemplo, julgo claramente haver uma muito maior heterogeneidade cultural e de valores nos EUA do que na União Europeia e no entanto existe uma identidade clara comum que os faz ser um único pais..É claro que poderás argumentar o facto de terem um único idioma e em termos de governação serem de facto unificados, mesmo com a diferença entre legislatura federal e estadual. Ainda assim, isso são meras formalizações pois no que à identidade real intrínseca diz respeito, julgo sinceramente haver uma muito maior identificação entre um grego e um alemão do que entre um nova iorquino e um texano, muito mais em comum entre um português e um sueco do que um californiano e um tipo do Mississippi. No entanto não vês, mesmo com eleições presidenciais em que um Obama pode ser substituído por um Trump, manifestações de desagregação identitária e de desunião como vês na Europa. E não o vês porque a uni-los está a argamassa que permite solidificar identidades e que as impede de desagregar e desintegrar; essa argamassa é o poder e o poder de um país manifesta-se sempre na sua influência externa. E o meu post ia sobretudo de encontro a essa ideia, a ideia de que a perda de poder significa o dissolver da argamassa que faz da União uma identidade coerente e é a perda desse poder real que põe a Europa a falar a várias vozes e expõe as diferenças que com tamanha contundência referiste.

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